portas, as janelas e pisos

Minha cidade tem vários recantos, pequenos pedaços, pequenos momentos. Cada lugar conta sua história, uma coisa pequena, uma parte ínfima daquilo que faz o todo da minha vida. Um quintal de terra, com suas plantas úmidas e o cheiro forte de água, meus pés, mesmo pequenos, já se enfiam na terra pra perceber o frio da terra e imaginar o grande pequeno mundo, com todas as mais fascinantes histórias que minha mente infantil pode criar. Minhas mãos acompanham o contorno suave do aço escovado do corre-mão da escadaria de mármore, já gasta, muitos pés passaram por ela, e o cheiro mofado do elevador Schindler acompanha-o enquanto ele sobe e desce, faz ranger suas engrenagens e sua graxa passa e repassa por seus cabos. No fundo quero ver os papéis, largados, soltos pelo balcão, sem classificação, sem ordem. Os trens passam rápido e levam os papéis, seus trilhos cantam ao perceber a pressão exagerada das rodas, forçando passagem por onde mal há atrito, o grito estridente do metal, o vulto incessante de uma grande lufada de ar sempre cerca a estação, mesmo que eu esteja sentado, longe, lá em cima, consigo ouvir os freios se liberando. Nesta rua que os carros passam, ela é larga, mas se faz apertada, (quero comprar, quero comer, quero ver, quero chorar, quero sentir, quero beber, quero sonhar, quero ganhar, quero sair, quero, quero, quero). Quero por todos os lados, e só eu, singelo, sem pressa, sem vontade... não quero. Pego a fila, porque espero, compro pão porque não quero, sigo andando, meus pés, um sobre o outro, um na frente do outro, me encaminham pra um lugar que eu sempre conheci, mas, no fundo, nunca senti que fosse meu.As paredes e portas, as janelas e pisos, tudo me é conhecido, tudo me é comum... mas não me é familiar. Desço, mais um pouco, longe de onde a vida anda, mais perto do chão, da terra, da umidade, o cheiro de verde que sobe pela casa... aqui sim é o meu lugar, isso tem meu cheiro, o cheiro da minha infância, o sabor do meu primeiro prato, a coragem do meu primeiro passo, minhas brincadeiras, meu mundo, todo meu, ali, andando junto a mim.As tristezas e a decepção da vida vira uma realidade, porque fui privado daquilo, e não necessáriamente foi uma força, foi sim, um movimento irresistível que me tirou daquilo. Não quero mais ver, não quero mais sentir, não quero mais sofrer... me cabe agora, lembrar, e saborear a mais bela memória, sentado, vendo os carros que passam velozes, que zunem meus ouvidos, enquanto sinto a água morna caindo no meu rosto.Nu, ouvindo música, no banheiro. Meu novo lar, minha nova casa, é minha? Descobri, por um instante, fugaz... a cidade de ninguém.

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