14/03
Quando vi aquele vulto, me deu um calafrio, uma coisa tão má. Largada no sofá, já não tinha vontade de comer, pra que? Engordecer! Chateada com a vida, que me foi grata, que me foi ingrata, que me foi vivida. Porque eu ainda posso ver, o vulto na escada?
A sombra do meu amor, que foi e vem, que me persegue e me arranca os cabelos, rasga minha pele, beija minha boca, meus dedos, meus medos. Mas eu não posso mais olhar, porque não posso mais sentir aquele salivar.
Mas ainda está, parado na sacada, estanque na cozinha, ouço a voz dele.
Nosso verão de correr sutil, de calor forte. Ficamos juntos, um minuto sequer, tocamos os ombros vivemos as lágrimas e rimos as pencas de todas as cores, frutas e texturas.
Porque eu nunca pude te tocar do jeito que eu mais sonhei, do jeito doce que minha alma sempre quis, do jeito manso que meus pensamentos sempre pediram? Te toquei com o fogo santo que ainda sobe minhas veias, que fecha meus poros e abre os trabalhos para a porta de entrada, onde nós ficamos juntos, eu em você e você em mim.
Minutos, apenas minutos de extremo pavor e torpor; seguidos de beijos e carinhos e afagos e ninhos, minutos que me faltam, que me estragam, me mimam demais.
Porque eu sei que agora, embaixo do cobertor, eu fico a olhar a tela da vida alheia, a tela de pano por onde os olhos penetram o chumbo e o cheiro. Não posso ter, porque não quero, porque não quis desse jeito.
Me cansei da sua hesitação, porque ainda está parado na minha porta e me faz arrepiar a nuca. Porque não entra e arromba os sentimentos, me faz derramar essa torrente de lágrimas que quer explodir nestas águas represadas! Entre em casa, pegue suas coisas, a sua roupa, a sua cama e me deixe em paz! Porque tu não me traz nada!
Não vai entrar, pois eu abro a porta! Te forço a correr, tu me lembra o gado, só anda assustado nas colidas, que não sabe pra onde vai quando vê o grotão. Tu é o gado, o boi mais sutil o boy mais fabril, que na sua arte me pegou desprevenida, de coração aberto, de peito fechado pelo catarro. Vá embora. Agora.
Porque fico aqui sozinha, e com meu sofá, meus queijos e meu gato. E isso me faz sofrer mais do que quanto estava com você, mas não posso voltar atrás, porque quis assim, porque é assim que tem que ser. O meu amor vadio, com seu corpo me tirou à força que tinha, agora só fico com a vontade... de ser e não ser.
Ana Luísa de Mantegais, 14-03-2015
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