Caelis


Sexto dia da criação, fim do dia. Homem, animais, terra, mares, céu, estrelas e sol; todos estão completamente formandos. Eis que se diz: 'Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra, e sujeitai-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre todas as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra.'*. Terminado o dia, Deus foi descansar seu eterno corpo. Eis o sábado.
O paraíso é o tipo de lugar em que o tempo é ausente, e a vida corre infindamente para todos os lados. Deus estava sentado, com as pernas esticadas por entre a grama, a cabeça repousando suavemente em cima do dorso de um pavão, uma mão sobre o peito e outra caída no tão conhecido Rio de Águas Vivas, a respiração lenta. O ritmo dos pulmões do Todo Poderoso é exatamente igual ao seu coração, que nunda deixou de bater forte e decidido.
Ao seu redor, as sonhadas ruas de ouro têm o pacato movimento de arcanjos que levam plumas, safiras, violinos e perfumes em suspensão. Todos eles obedecem o respirar do Senhor, e suas vidas dependem inteiramente d'Ele. O coral de anjos está posto nas escadarias do maior anfiteatro que o universo jamais viu e os olhos de carne que eu possuo jamais verão. Uma fileira infindável de músicos estão aguardando a ordem do maestro para tocar, entoar um hino que fluirá do mesmo bater do coração d'Aquele que É.
Entra o melhor das Regiões Celestiais, nosso Arcanjo Gabriel está pronto para conduzir O Santo Coro, para dar Glórias a Deus. Suas vestes não existem, mas elas estão lá, e seu rosto reluz como o sol. Quando seus passos pensaram em entrar na presença d'Ele, o Senhor levantou um de seus olhos, assentiu.
Por um tempo que não posso contar, houve música. A mais bela música que o céu produziu.
Os anjos estão reunidos para ver O Santo Coro, por este momento eles estão comendo as frutas que descem espontâneamente das inúmeras árvores que existem no céu. É mais do que uma multidão multiplicada por 6.10²³, e todos se alimentam agora. Eu acho que estou vendo o almoço celeste, se é que assim posso o chamar, é o almoço do sétimo dia da criação. - fim do ato.
Eis que as portas do céu, grandiosas portas feitas com o mais puro mármore, são lançadas pelos celestes ares. E labaredas de um intenso fogo estão entrando pelas Regiões Celestiais, um cheiro de enxofre está inundando o ar e tudo que era vivo, parece-me que estou a contemplar um exímio cataclisma.
Gabriel observa impávido, seus lábios finalmente são abertos, e o som de harpas parece entoar as primeiras sílabas, ele diz: Lucif - é interrompido.
Desta vez não se enxerga mais nada. Um estupor acontece, todos estão parados, e uma nuvem negra está sob nós. Os ouvidos parecem estar tampados, e tenho a impressão que todos os anjos estão sentindo a mesma coisa.
O Pai já não está mais deitado à beira do Rio.
Um trovão desce dos negros céus, e divide o paraíso em dois. Nele, ouve-se a voz de Deus, e a luz cega nossos olhos. Não há mais céu, nem inferno. Não há nada, somente a voz de Deus:
_Porque vieste escarnecer meu sábado? Fique quieto no lugar que te dei!
_Desculpe, milorde - sinto asco na voz - sempre esqueço abafar meu esplendor.
_Que palavra é esta? Quem é 'milorde'?
_És Tu. Aprendi com os seres que fizeste ontem.
_Que queres?
_Somente lhe mostrar os meus proeminentes mestres, venha ver o que teus cachorrinhos fazem.
O céu desvaneceu. Tudo estava em seu devido lugar. O Coral, o Senhor, os anjos. Somente havia uma pessoa, um ser que vestia o melhor fraque que os costureiros das mais ricas cortes fizeram.
Deus aceitou ver o que os homens faziam.
O homem de fraque, não é outro senão o próprio Satanás. Deus disse:
_Eu ficarei, mas meus olhos te acompanharão.
_Grato sou, milorde
O demônio desceu até a terra, e mostrou ao Senhor todos os Reinos que existem. Desde a grande China até o Moçambique. Mostrou a grande torre de Dubai, glória terrena recente. Mostrou os Campos Elíseos de Paris. E deixou que os próprios olhos de Deus vissem todo o explendor que o homem construiu.
Deus não vê só o presente, os olhos de Deus estão neste momento, no ano de 2010, em 27 de janeiro. Mas o Senhor contempla o passado, o presente e o futuro em tudo que ele enxerga.
Deus viu o homem mau, viu os poucos homens bons serem corrompidos pela maldade. Até que Satanás parou, ele parou bem aqui. O Brasil.
São duas horas da manhã, e alguns amigos estão num bar da região central da cidade de São Paulo. Um estranho se aproxima.
Ele não é realmente um estranho, é um mendigo, um morador de rua. O pobre veio pedir dinheiro para um daqueles que saía do boteco. O álcool no sangue, a alegria perene, e a coragem saliente estão nos olhos daquele jovem. Ele não quer dar dinheiro, ele quer mulher, ele quer homem, ele quer vida, ele quer sangue, ele quer ser Deus d'ele mesmo.
Um soco, e os dentes do pobre estão no chão. Sangue escorre por seu pescoço. Seu rosto desfigurado pela vida está, mais uma vez, marcado pela intolerância de um irmão, um homem como ele. Bêbado da vida, exatamente como ele.
Satanás põe um '38 na mão do pobre. A maldade já está lá, a pobreza de espírito já está no homem. Somente necessita da ferramenta para trazer ela ao mundo real. Eis o canal.

'Porque os olhos do Senhor repousam sobre os justos, e os seus ouvidos estão abertos às suas súplicas, mas o rosto do Senhor está contra aqueles que praticam males.'**.

Desta vez, o rosto do Senhor viu a injustiça. Tudo aquilo que ele nunca criou, o homem foi capaz de fazer. O homem vive ausência de Deus.
A própria mão do Senhor levantou o '38 e ordenou, em meio a fúria, a morte daquele jovem deus.
Dois tiros se seguiram, mais sangue derramado, mais almas para o Tártaro, mais vidas perdidas, mais tristeza. E menos homem.
Uma agonia está nos olhos daquele que caiu, o rosto bateu na guia e está sangrando também. O esgoto do centro de São Paulo sobe por suas narinas. Sangue se esvai pelas sargetas, e um inútil clamar de misericórida está em sua alma. O álcool se esvaiu do seu corpo, junto com seu sangue. Sua respiração lenta, no ritmo do Senhor, está diminuindo. Seu coração pára de bater, e o brilho da sua alma se apaga.

No outro dia, é somente mais um corpo no lixo humano.




*Genesis 1:28, Edição Contemporânea, João Ferreira de Almeida, Bíblia de Referência Thompson, Editora Vida, Copyright © 1992 por The B. B. Kirkbride Bible Company, Inc. e Editora Vida
**1ª Pedro 3:12, Edição Almeida Revista e Atualizada, Bíblia Online .com.br

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