Meus traumas pessoais

Acho que não disse para ninguém, se disse foi subjetivo. Mas o caso é que todos sabem, eu tinha um piano em casa. Que fique claro, logo no início, não, ele não era minha propriedade. Ele pertenceu à Igreja Unida e foi doado à Igreja Holiness, lá ele apodrecia de larga maneira até que sugeri que ele fosse para minha casa, coisa que de fato aconteceu. Eu o possui por mais de três anos ininterruptos, foi um período afetivo, na realidade, foi um período interessante. Reuni muito ali, chorei nele, gritei nele, trovejei nele, destilei meu veneno nele, e muito mais; acho que o que eu mais fiz com aquele piano foi colocar um pouco de alma na minha vida.
Ele estava com algumas teclas quebradas, mas, por ordem do Ilmo. Sr. Meu Pai Terreno, e concordância de sua Senhóra, não houve perspectiva de conserto(com 's'). Permaneceu assim, nos últimos dias.
Até que veja você, como se segue minha tão marcada vida, chegou o fim do ano de 2009, em que o 'bradescompleto' fez uma propaganda um tanto vermelha. Não quis passar o ano com minha familia, meus planos originais traçavam que minha passagem de ano seria solitária. Então, decidi por ficar em casa, enquanto meus pais viajavam.
No último dia do Ano, dia de S. Silvestre, dia de Virada (na) Paulista, eis que surge uma pequena japonesa que não sabe falar nosso idioma, e ela está em minha porta, não contente em massacrar a campainha, ela começa a gritar! Tá, acordei. Olhei na janela e falei 'ponte que o partiu'. Eu achei que havia morrido na cabeça destas pessoas.
A síntese foi que eu a recebi, na porta mesmo, não infecto minha casa, ou a casa de meus pais, com gente ignorante. Conversa idílica:
_Você bem?
_Uhum
_Seu pai-mãe em casa?
_Não
_Ahhhhh! - olhar para o nada - Você estuda?
_Sim, terminei o primeiro ano
_Bom, e trabalho, fazer?
_Sim, todos os dias
_E piano toca você?
_Nos finais de semana (O_O)
_Conversou seu pai piano?
_Nãoo
_Então fala ele, segunda trabalha ele, né?
_Uhum
_Ahhhhh! Tchau!
_Tá
Alguém poderia por favor destruir o ano todo, porque raios uma pessoa dessa vem me visitar no último dia do ANO! Ela é sem noção? Na verdade eu fiquei com muita raiva dela. É verdade, não tenho porque mentir.
Quando contei para minha mãe, e ela viu que eu estava com muita raiva, ela passou três semanas tentando me convencer que a raiva é do capeta e faz mal só pra mim. Isso foi na segunda feira, quando o Anno de MMX já havia começado de facto.
Acredite, eu até sonhei que perseguia uma horda repulsiva de japoneses atirando nos pés deles para que eles corressem sobre as águas e voltassem para aquele fim de mundo que eles habitam.
Pensei seriamente em levar o caso a justiça e requere o Usocapião de Bens Móveis, o qual eu possuia direito, e ainda de quebra, degredava eles, não fosse a Lei da Anistia Migratória.
Mas a raiva se abrandou em duas semanas. E acabei por aceitar a situação.
Numa noite, eu mudei radicalmente de sentimento. Acionei o sentido da nostalgia. Me despedi do piano, tirei tudo de cima dele, coloquei alguns jornais em cima para não empoeirar. Peguei o broche que meu pai havia ganho no ano de 2003, nele estava escrito 'que a paz de deus esteja contigo'. Coloquei ele no teclado do piano, tranquei. Deixei a chave em cima. Olhei pra ele. Me despedi.
Depois deste dia, nunca mais encostei o dedo nele. Até cheguei a apressar as coisas, liguei para que ela fosse buscar o piano. Queria logo me livrar dele, tirar ele da minha vista. Assim, nada mais que está ao meu redor me liga àqueles japoneses. Anteontem buscaram o piano.
Minha sala está vazia, mas, acho que está melhor assim.

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A segunda parte de tudo isso é que eu vou comprar um novo, um piano que eu possa dizer que é minha propriedade. Selecionei alguns para comprar. A verdade é que eu quero o piano mais velho possível, porque isso me apetece, isso me deixa feliz. Eu quero algo que me faça sentir parte do meu passado, eu tenho certeza que eu sou um velho, quero um piano da minha idade. Que seja por fora, aquilo que eu sinto por dentro. Que transmita o meu sentimento, que mostre as minhas pretenções pessoais.
Em resumo, acho que este que está ao lado fala tudo isso por mim.

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